A solidão amiga ( Rubem Alves)
Hoje é dia de reflexão no blog! Sei que o texto que escolhi é um pouco extenso, mas para falar de questões tão profundas o mergulho na complexidade se faz necessário. Sou completamente apaixonada pelo Rubem Alves, acho que, embora não nos conheçamos, posso dizer que ele me conhece muito bem, traduz a minh'alma como ninguém! rsrs
Quando eu crescer quero ser igualzinha a ele.(rs) Caso não se interesse em ler o texto, não deixe de assistir ao vídeo porque é muito bom!!!
Boa leitura,bom domingo e excelentes reflexões!
Beijo da Jô
Então, vamos à "solidão amiga!"
A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para
casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é
silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a
tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão.
Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão:
ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para
uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as
fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao
falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela
sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem
se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua
amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a
alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia
que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma
impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava
perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de
Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A
chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre
solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade
mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de
uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso
fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de
Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As
grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem,
paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na
ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido
por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, "parece que há em nós
cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível
gosta de valores frágeis". A vela solitária de Bachelard iluminou meus
cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na
cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como
motivo de meditação: "Como se comporta a Sua Solidão?" Minha solidão?
Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se
comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta
e morta. Ela tem vida.
Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a
que mais amo: "Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que
você faz com aquilo que fizeram com você." Pare. Leia de novo. E pense.
Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se
Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu
jardim.
Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um
giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você
está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que
gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga...
Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de
inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond
acha que sim: "Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava,
ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência. A ausência
é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus
braços,/ que rio e danço e invento exclamações alegres,/ porque a ausência,
essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim.!"
Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira.
Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam
cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música
e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas!
Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de
caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o
mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas.
E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de
estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem
as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio
pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua
solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O
estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma
forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos.
Sartre chegou ao ponto de dizer que "o inferno é o outro." Sobre
isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o
que ele escreveu sobre a sua solidão:
"Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz - ela me fala
com ternura e felicidade!
Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos
juntos através de portas abertas.
Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e
luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali as palavras e os tempos/poemas de todo o ser se abrem
diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança
pede para aprender de mim a falar."
E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em
construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E
enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu
que, "certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma
súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa - garrafa, prato,
facão - era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em
construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele
humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo
levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário
emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para
ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais
bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua
construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova
dimensão: a dimensão da poesia."
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos
que conheço, disse o seguinte: "As obras de arte são de uma solidão
infinita." É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num
momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se
transformou em poeta.
E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente
descrita por Drummond:
"...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e
por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada
por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não
estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu
sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília..."
Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros,
participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a
jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela
estava irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard,
um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade
humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi
quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei
para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles:
cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo,
gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que
os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer
um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria.
Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem
sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria
inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam
fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela
que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte.
Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim,
solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que
torna alegre a minha solidão...
A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em
parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a
cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa
comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão
porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a
dor da comparação. Ela não é verdadeira.
Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os
companheiros que fazem minha solidão feliz.
Assista ao vídeo através desse link. Não consegui colocar o vídeo.
EU MAIOR- Entrevista Rubem Alves
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